quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Efeitos danosos da sinalização por adenosina da doença falciforme


ResearchBlogging.org
Marilda Gonçalves
FIOCRUZ-Bahia
A hemoglobina S (HbS), cuja denominação vem do inglês sickle, é uma hemoglobina (Hb) variante decorrente da mutação pontual GAG→GTG no sexto códon do gene da globina beta (β), levando a substituição do ácido glutâmico por valina na sexta posição da cadeia polipeptídica β. A hemoglobina S, em condições de hipóxia, pode polimerizar e formar fibras que modificam a forma dos eritrócitos, normalmente bicôncavos, favorecendo o aparecimento de formas alongadas ou falcizadas, no fenômeno conhecido como falcização.  Os polímeros de HbS causam alterações na membrana plasmática dos eritrócitos, que perdem água e íons, tornam-se mais rígidos e apresentam  exposição extracelular de epitopos de proteínas e glicolipídios que normalmente são encontrados no interior do corpúsculo, com  exposição de fosfatidilserina, que favorece a ativação da cascata da coagulação, expressão de citocinas inflamatórias, ativação de moléculas de adesão e ligantes, tanto em eritrócitos jovens ou reticulócitos como em eritrócitos maduros, além da ativação de leucócitos, plaquetas e células endoteliais, favorecendo a ocorrência da oclusão vascular, isquemia tecidual e danos em vários órgãos, sendo que a cronicidade da doença contribui para a disfunção edotelial e vasculopatia.
Todas estas transformações ocorridas no eritrócito reduzem a sua vida média, favorecem a hemólise tanto intravascular como extravascular, com liberação de produtos derivados do catabolismo da Hb, como heme, ferro, bilirrubinas, principalmente a bilirrubina indireta, além de aumentar moléculas associadas à hemólise e inflamação, como a desidrogenase lática e a proteína C reativa, entre outras. A liberação desses produtos tóxicos na circulação contribui para o aumento de espécies reativas de oxigênio e diminuição de proteínas envolvidas diretamente no metabolismo desses catabólitos, como a hemeoxigenase, haptoglobina e hemopexina. 
O indivíduo que apresenta a homozigose para o alelo βS (HbSS) possui a anemia falciforme (AF), que é uma doença genética, com herança autossômica recessiva, caracterizada pela ocorrência de anemia hemolítica grave devido a redução da sobrevida dos eritrócitos. Entretanto, a AF juntamente com todas as formas de hemoglobinopatias onde ocorre a associação da HbS com outras Hbs variantes ou de síntese recebem a denominação de Doença Falciforme (DF). A AF é a DF mais grave, sendo que os indivíduos heterozigoto para a HbS ou AS  não se enquadram na classificação de doença, por serem assintomáticos. 
Um aspecto importante relacionado aos pacientes com DF é o seu acompanhamento e tratamento. Por se tratar de uma doença com clínica grave e heterogênea, o tratamento tem sido mais individualizado, na tentativa de sanar os sintomas da doença, mas sem cura. A hidroxiuréia, um quimioterápico muito conhecido no tratamento de neoplasias, tem sido utilizada no tratamento de pacientes com DF, uma vez que aumenta a hemoglobina fetal, reduz leucócitos, com melhoria de muitos eventos clínicos presentes na doença. Entretanto, efeitos a longo prazo do tratamento com hidroxiuréia nesses pacientes ainda são desconhecidos. Desta forma, a busca por tratamentos novos para a doença tem sido incansável. Com base nesta necessidade, o estudo realizado por Yujin Zhang e colaboradores (The University of Texas Health Science Center at Houston) recentemente publicado no Nature Medicine) traz dados interessante que podem contribuir para utilização de uma nova forma de tratamento para indivíduos com DF. Os autores enfatizam o papel da hipóxia na patogênese da DF. Eles investigaram, por metabolômica, o perfil de moléculas presentes em modelos de camundongos transgênicos com DF e encontraram no estado estável uma quantidade elevada de adenosina no sangue desses camundongos. A adenosina aumenta sob condições de hipóxia a partir da degradação do ATP extracelular derivado das células ou órgãos afetados. Para testar se a adenosina estava contribuindo para a falcização dos eritrócitos os autores trataram os camundongos com DF com PEG-ADA (polietileno glicol modificado pela adenosina deaminase), que é uma droga usada, com sucesso por mais de 20 anos, para reduzir as quantidades de adenosina em indivíduos com deficiência de ADA. Após 8 semanas de tratamento dos animais com PEG-ADA, o estudo dos reticulócitos por citometria de fluxo demonstrou que o número de células falcizadas e de reticulócitos foi bastante reduzido; a hemólise intravascular também reduziu significantemente após o tratamento, com diminuição da hemoglobina no plasma, aumento das concentrações de haptoglobina e diminuição de bilirrubina total. Eles também descreveram o aumento da vida dos eritrócitos de 2 para 4 dias após o tratamento crônico com PEG-ADA, com aumento da concentração de hemoglobina, hematócrito e diminuição da contagem dos leucócitos e do RDW. Os autores encontraram também a redução de danos em tecidos que foram comprovados após o exame de biópsias nos pulmões, fígado, baço e rim dos animais sem tratamento quando comparados com as biópsias de animais tratados por 8 semanas com o PEG-ADA. Com relação ao rim, o efeito benéfico da droga foi também confirmado pela diminuição da proteinúria e aumento da osmolaridade urinária que são indicativos da melhora da função renal. Os autores também testaram o efeito da droga na reoxigenação da hipóxia induzida por inflamação dos pulmões pela imunocoloração com anticorpos específicos para neutrófilos e o tratamento reduziu o infiltrado de neutrófilos nos pulmões e a abundancia de citocinas proinflamatórias nos pulmões, como a IL-1β, IL-6 IFN-γ e o GM-CSF. Os autores também testaram o efeito da droga em metabólitos gerados pela glicólise, como o 2,3 difosfoglicerato (2,3-DPG), que diminui a afinidade da Hb pelo oxigênio por um mecanismo de competição conformacional. Em experimentos utilizando o análogo não metabolizável da adenosina, como o NECA (5’-N-etilcarboxiamidoadenosina), eles demonstraram que a indução do 2,3-DPG pela adenosina nos eritrócitos dos camundongos é mediada por receptores de adenosina, em especial o A 2B R, pela via de sinalização PKA.  Desta forma, os autores concluem que tendo em vista o efeito protetor destes receptores, terapêuticas voltadas para o A 2B R tem um potencial para reduzir a morbidade e mortalidade associada ao DF.      

Zhang, Y., Dai, Y., Wen, J., Zhang, W., Grenz, A., Sun, H., Tao, L., Lu, G., Alexander, D., Milburn, M., Carter-Dawson, L., Lewis, D., Zhang, W., Eltzschig, H., Kellems, R., Blackburn, M., Juneja, H., & Xia, Y. (2010). Detrimental effects of adenosine signaling in sickle cell disease Nature Medicine, 17 (1), 79-86 DOI: 10.1038/nm.2280

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