quinta-feira, 4 de agosto de 2011

'As doenças negligenciadas são doenças de povos negligenciados'

'As doenças negligenciadas são doenças de povos negligenciados'

1º/08/2011
A que doenças se refere, exatamente, o termo doença negligenciada?  Para o Acadêmico Manoel Barral Netto - médico, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e diretor de Cooperação Institucional do CNPq - não existe uma definição aceita por todos. Ele  apresentou palestra sobre o tema na 63a Reunião Anual da SBPC, em Goiânia, no dia 14 de julho.
Considerando que essas doenças são causada por agentes infecciosos e parasitários, a categoria incluiria doenças como a de Chagas, lepra, dengue, infecção intestinal nematóide, esquistossomose, leishmaniose, entre outras. Barral esclareceu que grande parte das doenças negligenciadas está relacionada à transmissão vetorial e localiza-se geralmente em regiões tropicais ou, ainda, em "regiões menos ricas do planeta". O Acadêmico disse, no entanto, que termos como "medicina tropical" e "doenças tropicais" estão fora de moda.
 
A malária, por exemplo, pode ou não ser considerada doença negligenciada: "A situação da malária mudou muito. Em 1900, ela era bastante incidente na Amazônia e em toda parte superior da América do Sul, além da África. Hoje, apesar de ainda muito prevalente na África, vemos uma grande redução na incidência nas outras áreas". Mesmo assim, a malária ainda é considerada um problema de saúde pública, uma vez que não existe uma vacina eficiente e o tratamento, apesar de eficaz, não bloqueia a transmissão.
 
Já em relação à situação da leishmaniose visceral no Brasil, houve uma melhora da condição de atendimento nos últimos anos, mas a doença ainda apresenta uma mortalidade alta, de 6%. "Achava-se que era por causa da falta de atenção médica mas, mesmo com a melhora nesse aspecto, a mortalidade não diminuiu", afirmou o pesquisador. "Concordamos que é falta de conhecimento da patogênese da doença; está faltando alguma informação importante. Muito pouco é investido no estudo de biologia".
 
Barral Netto alertou para o fato da doença estar se espalhando no país: ela se restringia ao Nordeste; agora está se expandindo para o Centro-Oeste e chegando ao Sudeste. "O flebótomo [mosquito transmissor da leishmaniose] está em grandes capitais, áreas urbanas, envolve cidades médias e grandes". A essa constatação o Acadêmico relacionou um trabalho publicado na revista científica inglesa The Lancet, em 2010, que avalia doenças infecciosas na Europa. Segundo o estudo, em alguns casos, o desenvolvimento socioeconômico, a urbanização, migração e globalização contribuem mais para a transmissão de doenças do que mudanças climáticas.
 
Segundo o pesquisador, o conhecimento sobre o vetor transmissor sempre foi pequeno, de modo que ele era visto como uma 'seringa' que transmitia a doença. Hoje, já se percebeu que a exposição à saliva do vetor leva a alterações que podem influenciar o curso da doença. "Vimos que a pré-exposição à saliva faz com que se tenha uma outra resposta à malária, posteriormente, e isso já tinha sido visto na leishmaniose". Barral Netto disse que essa questão é difícil de modelar na área endêmica. "Em geral, as pessoas são muito mais picadas por flebótomos não infectados do que infectados. A pessoa picada por um flebotomo não infectado apresenta uma mudança do padrão. Não é uma situação muito simples de entender".
 
Um exemplo citado da complexidade desse tema foi a malária vivax, que Barral Netto explicou ser "uma malária negligenciada dentro das malárias". Nela, indivíduos assintomáticos têm uma resposta imune menos intensa que os sintomáticos. Ele afirmou que é possível saber se o indivíduo terá sintomas ao ver se ele se expôs à saliva do vetor ou não. "Quando falamos de exposição ao vetor, parece que todo mundo é infectado do mesmo jeito, mas não é", declarou. "No caso da leishmaniose, alguns indivíduos fazem reação com pontos hemorrágicos, outros fazem com uma resposta mais nodular, mas todos são expostos a flebótomos iguais, com o mesmo tempo de alimentação". Segundo o Acadêmico, o fato do indivíduo infectado responder à saliva de forma eficiente muda a maneira que ele responde à doença: "Pessoas que têm uma resposta positiva à saliva têm uma resposta celular contra a leishmania mais eficiente".
 
Barral Netto também fez uma associação entre a malária e a hepatite B, informando que as duas doenças são geograficamente coincidentes. Através de um mapa, o palestrante mostrou que a área endêmica da malária é a mesma da hepatite B, apesar de esta última também existir em outras regiões. Ele explicou que indivíduos com malária e hepatite B, em geral, se encontram em melhor estado. "A presença da malária leva a um aumento da carga viral, mas ele não tem uma hepatite muito mais grave pelo fato de ter a outra doença", revelou. O pesquisador disse que a malária sintomática ocorre com mais frequência em indivíduos com mais de 31 anos, moradores da área de incidência da doença há mais de quatro anos, co-infectados atualmente com o vírus da hepatite B e que tenham tido exposição natural a este vírus no passado.
 
Barral mencionou que, entre as dificuldades de se produzir vacinas de sucesso contra os parasitas está o fato de que, na maioria dessas doenças, não se consegue anticorpos eficientes.  Ele citou, no entanto, o exemplo bem-sucedido da pólio, cuja vacina foi eficiente na erradicação da doença entre 1988 e 2002. Segundo o palestrante, a perspectiva das vacinas se relaciona aos novos adjuvantes, à compreensão global dos fatores imunológicos e à integração entre aspectos imunológicos e não imunológicos.
O tratamento dessas doenças é complicado pelo fato de não existirem bons medicamentos, uma vez que estas são enfermidades que atingem populações de baixa renda. "Na maioria dos países, o governo não dá os remédios e o paciente não tem dinheiro para comprar. Por isso, não são medicamentos atraentes para a indústria farmacêutica. O que a gente chama de resistência à droga, na verdade é um tratamento mal feito", afirmou Barral.
 
Ele complementou que esse quadro é agravado pela existência de produtos falsos: "A pessoa toma o remédio, mas não tem nada dentro, especialmente em países asiáticos". O Brasil também não controla adequadamente a importação desses produtos, conforme informou o Acadêmico. "Existe resistência ao remédio, mas é difícil visualizar o quadro enquanto não tivermos produtos de boa qualidade".
 
O Acadêmico finalizou constatando que, em vez de tentarmos nos livrar do parasita, talvez seja melhor entendê-lo e aprender a conviver com ele. "Cientificamente, há muitos desafios na compreensão dessas enfermidades infecciosas, mas maiores que os desafios científicos são aqueles de outras áreas, como os ambientais e socioeconômicos, que também afetam essas doenças". Ele disse que, enquanto houver desnutrição, por exemplo, será difícil resolver os problemas. E complementou afirmando que as doenças negligenciadas são, na verdade, doenças de populações negligenciadas: "O que se conhece destas doenças, em grande parte, é porque elas também afetam os militares ingleses e americanos".
(Clarice de Oliveira e Elisa Oswaldo-Cruz para Notícias da ABC)

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