quarta-feira, 3 de março de 2010

As penas vendidas na ciência médica (Medical ghostwriters)

ResearchBlogging.org
Você lê um artigo numa revista respeitada e confia que os resultados não estão influenciados pela indústria envolvida no produto analisado. Imaginemos que se trata de uma droga e os resultados são bastante positivos. Isto desperta a dúvida: Será que há um viés? Você, então, consulta a instituição dos autores e, pela sua respeitabilidade, imagina que estão isentos da influência do laboratório. Infelizmente, isto não é uma garantia, segundo o estudo recente do PLoS Medicine sobre ghostwriting (Ghostwriting at Elite Academic Medical Centers in the United States. doi 10.1371/journal.pmed.1000230)
Ghostwriting, traduzido livremente como autoria fantasma, segundo usado neste post, designa a prática da indústria farmacêutica de produzir trabalhos científicos, mas publicá-los como de autoria de pesquisadores acadêmicos. O trabalho publicado por autores de instituições respeitadas leva a que seja visto com mais confiança pelos leitores. Estes estudos por vezes são feitos com metodologia pouco confiável e, algumas vezes, os seus resultados foram manipulados. Um outro aspecto grave é que os autores-fantasmas aceitam participar da fraude em troca de ganho econômico. O que eles fazem é vender a sua pena, e o nome da sua instituição, para que os trabalhos sejam vistos de forma mais benévola por editores, revisores e pelo público, já que provem de autores e instituições respeitadas. Porém, o motivo real pelo qual as companhias praticam o aluguel dos autores fantasmas é que as publicações podem influenciar a prática médica e, assim, as vendas dos seus produtos.
“When a pharmaceutical salesperson hands a clinician an article reprint, the name of the institution on the front page of the reprint serves as a stamp of approval,” ... “The article is not viewed as an advertisement, but as scientific research; the reprint is an effective marketing tool because peer-reviewed journal articles generated in academia are perceived to be the result of unbiased scientific inquiry.”
Entre os gravíssimos casos relatados pelos autores, e todos com citações, destaco o da paroxetina. Um estudo clínico randomizado em adolescentes foi publicado como se a droga fosse, em geral, bem tolerada e efetiva para depressão grave em adolescentes. Posteriormente, devido a procedimentos legais que exigiram a análise integral dos dados, ficou claro que a droga não foi eficaz em todos os 8 desfechos avaliados e, ainda mais grave, demonstrou dano. 
O artigo avaliou 50 instituições americanas de ciências médicas, todas altamente respeitadas, quanto à sua política em relação ao ghoswriting.  Metade destas instituições não tem uma política em relação ao tema e somente 10 das 50 instituições explicitamente proíbem a prática. Entre as instituições que não possuem uma política contra autoria fantasma estão a Harvard, a Cornell, a UCLA e a Mayo Clinic.  É interessante que muitas instituições têm uma política clara sobre autoria de trabalhos científicos, mas não têm menção explícita à prática de ghostwriting.
O problema maior é que o ghostwriting passou de casos raros a uma prática frequente.
“Ghostwriting was once the ‘‘dirty little secret’’ of the medical literature, but this no longer is the case. Pharmaceutical companies have used ghostwriting to market sertraline , olanzapine, gabapentin, estrogen replacement therapy, rofecoxib, paroxetine, methylphenidate, milnaciprin, venlafaxine, and dexfenfluramine. Ghostwriting is now known to be a major industry.”
O impacto do ghostwriting na área médica pode ser muito danoso, mas em outras áreas ele não é de se desprezar. Artigos e livros publicados por algumas personalidades na verdade são de autoria de fantasmas. Este problema está tão endêmico que há sites dedicados ao tema da literatura que o tratam como algo normal.  O Lisa Tener’s Writing Blog tem um post no qual, em resposta a uma consulta, sugere quanto se pode cobrar para escrever um livro a ser publicado com nome de outrem. Adicionalmente, sugere a contratação de um advogado (conhecedor do tema) e mesmo que se pode tentar conseguir royalty sobre o texto. Veja um trecho:
Ghostwriting fees vary, but $12,000 - $15,000 are usually the low end for a book of 250-300 pages or more. A much shorter book might only be $8,000 - $12,000. .... I would start at $15,000 if there is little or no research involved and you will get most of the information through interviews with the author.
If you will be doing extensive research, you should definitely charge more than that. If you already have publishing credits to your name, you should also charge more. Experienced ghostwriters tend to charge between $20,000 - $50,000 and even more.
I would definitely try to negotiate a modest royalty ...
Yes, I recommend hiring an entertainment lawyer. Do be careful. Try to find a person through personal referrals–someone’s who’s used this lawyer specifically for a ghostwriting contract
Bastante explícito para um negócio que me parece deveria ser ilegal. De todo modo, espero não ter estimulado alguns a entrar nesta atividade ao difundir os valores cobrados.
Voltando à área médica, os autores do artigo, consideram que a prática do ghostwriting deve ser considerada uma ameaça à saúde pública, pelo seu poder de influenciar a prática médica erroneamente e que deveria ser categorizada como má-prática acadêmica, na mesma categoria do plágio e da falsificação de dados.
Os autores propõem medidas claras para adoção ampla de uma política contra o ghostwriting. Destaco as seguintes:
As instituições devem informar que uma proibição do ghostwriting será adotada em breve. No meio tempo, os que participaram nesta prática teriam uma anistia para indicar os trabalhos que foram elaborados com autores fantasmas. Estes artigos seriam reavaliados e analisada a necessidade de serem retirados (retracted) da literatura médica.
A política contra autoria fantasma deve incluir aspectos como: 
  • Os autores devem ter tido uma participação ativa no trabalho;
  • A realização de revisões mínimas num manuscrito não é critério de inclusão entre os autores;
  • TODAS as pessoas que tiveram uma contribuição importante ao manuscrito devem ser incluídas na lista de autores;
  • Proibir a participação em trabalhos que contenham autoria fantasma;
  • Definir a prática da autoria fantasma como conduta inadequada , na categoria do plágio e da falsificação de dados;
  • As agências financiadoras devem suspender o financiamento de instituições que não adotem uma política clara contra a autoria fantasma.
O tema é realmente bastante importante e este debate e adoção de um política clara também deve ser analisado pelas nossas instituições.

Lacasse, J., & Leo, J. (2010). Ghostwriting at Elite Academic Medical Centers in the United States PLoS Medicine, 7 (2) DOI: 10.1371/journal.pmed.1000230

2 comentários:

  1. Autor fantasma??
    Temos algo parecido. Conheça o Ze Moleza.
    O pesadelo dos professores.
    www.zemoleza.com.br
    A qualidade dos trabalhos não deve ser alta, mas pelo tempo que o site está no ar, já deve ter funcionado para muita gente.

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  2. Excelente mensagem. Mais um motivo para analisarmos com critério científico as evidências que nos são apresentadas.

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