Início do ano letivo na Faculdade de Medicina e, à procura de alguns arquivos no computador, deparei-me com um texto que escrevi sobre a formação de médicos. Não lembro precisamente a época em que o escrevi, seguramente em torno do ano 2000. Encontro-o atual (ou parei no tempo, sempre há que se considerar hipóteses alternativas) e fico feliz que a nossa vetusta Faculdade tenha optado por modernizar o seu ensino. O processo de transformação curricular está em curso, a despeito das previsíveis resistências, e creio estar a dar bons resultados. As minhas experiências de ensino com os novos alunos, do eixo de formação científica e com os alunos da imunopatologia são muito gratificantes.
“As escolas médicas estão frente a um desafio de grande porte. Como formar médicos bem preparados que dominem um conhecimento sempre em expansão? A duração do curso médico é longa. Há muito tempo o curso de Medicina se estende por seis anos. A formação e atualização médica são feitas através da leitura de artigos científicos, publicados em revistas especializadas, e que apresentam os conhecimentos mais recentes nos diversos temas. A informação em todas as áreas da medicina tem aumentado de forma dramática, superando mesmo a capacidade de absorve-la completamente. O volume destas comunicações é surpreendente. Somente no ano de 1999 foram publicados mais de 58.000 artigos sobre câncer. Para sabê-los todos um estudante de medicina precisaria ler 160 destes artigos por dia, incluindo sábados domingos e feriados. Mesmo que dedicasse o seu esforço somente para esta tarefa, o tempo seria insuficiente. Não é possível, fisicamente, ler 160 artigos científicos num dia. Ainda que esta tarefa titânica fosse cumprida, o estudante estaria cobrindo apenas uma área da medicina. Tentasse ele saber também sobre diabetes, e teria que ler mais 23 artigos em cada um dos 365 dias do ano. Tarefa semelhante é colocada frente ao médico já formado, como se manter atualizado neste mar de informações?
O aumento da duração do curso não resolverá o problema. Em cada ano que se prolongue o curso haverá um acúmulo de informações tão grande que a tarefa não teria mais fim. É necessário abandonar a postura de tentar transmitir todo o conhecimento, pela sua impossibilidade. Por outro lado, o ensino médico deve garantir a qualidade do egresso. A sociedade necessita de profissionais bem qualificados, capazes de cuidar integralmente da saúde. Ensinar apenas parte do conhecimento médico, formando arremedo de especialistas, é solução inadequada. Não há bons especialistas sem uma sólida formação geral em medicina. Não se pode entender adequadamente a parte sem uma compreensão harmônica do todo.
A tarefa que se impõe à escola médica é a de modificar o ensino aumentando a sua eficiência. Duas características devem ser estimuladas desde o início da formação médica. A capacidade de buscar a informação desejada e a seletividade na sua escolha. Sendo impossível ler tudo, o médico deve saber escolher qual a informação que necessita para entender um assunto, e exercer um espírito crítico sobre o que lê. Desnecessário salientar que nem tudo que se publica é do interesse de todos, e que nem tudo é de boa qualidade. O médico, em formação ou o já formado, deve ser capaz de separar o joio do trigo. Como adquirir esta capacidade? O domínio de conceitos e da metodologia pela qual se gera o conhecimento, aliado à análise cuidadosa de elementos que apontam para a qualidade de como a informação foi gerada, são capazes de fornecer os instrumentos para realizar com sucesso a seleção crítica da boa literatura médica. Buscar sempre a atualização, e reter o conhecimento necessário e de qualidade permite conhecer o que é importante para a boa prática.
Ensinar a buscar o conhecimento adequado na literatura médica resolve parte do desafio da escola médica que se pretende moderna. Há outros elementos na formação do médico, já que a medicina exige a prática. De pouco adiantaria um profissional conhecedor do saber médico e incapaz de realizar o exame, ou interpretar os resultados de exames, que lhe fornecessem os elementos para o diagnóstico. O ensino deve buscar novos espaços de prática, inserir o aluno desde cedo, e com supervisão, nos locais onde se realiza a medicina. A utilização de laboratórios, centros de saúde individual e da família para o ensino médico é útil para o ensino, e benéfico para a sociedade. Os esforços necessários para esta integração devem ser realizados pela área educacional e pela área da saúde.
O desafio da formação do profissional médico para o novo milênio pode ser realizado, depende da ousadia de implantar mudanças nas escolas médicas e de apoio da sociedade. O resultado será, seguramente, do interesse de todos.”
Ilustração. Fotografia do Prof. Fernando Carvalho: escadaria da bicentenária Faculdade de Medicina da Bahia.
Caro Barral:
ResponderExcluirA problemática envolvida na formação médica passeia em todas as áreas do conhecimento.
Não tenho respostas de como melhorar a formação médica, e, muitas vezes chego a pensar que a tal formação é inerente (e vocacional) a cada indivíduo que a busca.
Tenho muitas perguntas, isso eu tenho.
Mas um dos problemas básicos que tenho visto trata de baixos salários de profissionais qualificados (não sou um mercenário!). Outros problemas tratam de entraves buro-acadêmicos que pioram ainda mais esse quadro.
Soluções são necessárias, urgentemente.